O Cerrado é o segundo bioma brasileiro em extensão, é fundamental para o abastecimento de água para todo o país, mas atrai menos atenção que a Amazônia — apesar de ter uma biodiversidade tão rica quanto. A advertência é do professor Guarino Colli, do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador da Rede Biota Cerrado. Em entrevista ao *CB.Poder* — uma parceria do *Correio* com a TV Brasília —, ele explicou a necessidade de se inserir o Cerrado nas discussões da COP30 e desenvolver estratégias de financiamento para a preservação do bioma. Leia a seguir a conversa conduzida pelas jornalistas Mariana Niederauer e Mila Ferreira.
**A COP30 será realizada em Belém, na Amazônia. Qual a avaliação sobre a presença do Cerrado nesse debate?**
A realização da COP30 no Brasil é muito importante. É um evento mundial, no qual os países membros das Nações Unidas se reúnem para discutir a crise climática e seu enfrentamento. A crise climática é indissociável da crise da biodiversidade. O Cerrado é o segundo bioma brasileiro em extensão, depois da Amazônia. Possui grande biodiversidade e é crucial que esteja na agenda da COP. Sem essa visibilidade, políticas de conservação e financiamento acabam concentradas apenas em florestas.
**É o momento de articular a maior participação do Cerrado na COP?**
Certamente. Como a conferência será em Belém, todo o foco fica na Amazônia. Sempre que se discute conservação, no Brasil e no mundo, fala-se muito da floresta, e isso é importante. Mas, com esse foco exclusivo, outras regiões ficam descobertas, e o Cerrado é uma delas. Precisamos mostrar que ele abriga uma biodiversidade comparável à Amazônia e fornece serviços ecossistêmicos vitais.
**O Cerrado enfrenta desafios específicos em preservação, restauração e conservação. Por que ele é tão importante?**
Em muitas situações, o Cerrado é tão diverso quanto a Amazônia em número de espécies por hectare. A Amazônia tem maior extensão e é mais difícil de ocupar mecanicamente. O Cerrado sempre foi visto como pobre em biodiversidade, mas, hoje, sabemos que abriga uma enorme variedade de espécies e fornece serviços essenciais, especialmente água e clima. Dentre as 12 principais bacias brasileiras, oito têm nascentes no Cerrado, como São Francisco, Paraná, Paraguai, Araguaia e Tocantins. O que ocorre no Cerrado repercute em todo o território nacional.
**Como a devastação do Cerrado impacta a água e outros serviços ecossistêmicos?**
Basta lembrar da crise de energia durante o apagão. Os níveis dos reservatórios baixaram porque os rios e o lençol freático diminuíram. A falta de água afeta o abastecimento, a irrigação e a geração de energia. O Cerrado é berço das águas — se ele for degradado, toda a sociedade sofre. Além disso, a alteração do solo e da cobertura vegetal interfere na capacidade de retenção de água e na qualidade da irrigação, afetando o agronegócio e a vida urbana.
**A legislação ambiental protege o bioma de forma adequada?**
O problema começa na Constituição, que cita Amazônia e Mata Atlântica, mas não o Cerrado. No Código Florestal, propriedades na Amazônia devem preservar 80% da área; no Cerrado, apenas 20%. Em áreas de transição, 35%. A legislação não protege adequadamente o Cerrado. Além disso, muitas propriedades não cumprem nem esse percentual. Precisamos discutir mudanças, criar agricultura sustentável e garantir biodiversidade. Sem isso, não é possível conciliar produção agrícola com conservação.
**A meta 30x30 da ONU ajuda nesse sentido?**
A meta prevê proteger 30% dos biomas até 2030, mas a lei atual só exige 20% para o Cerrado. O passivo ambiental é grande, e precisamos de monitoramento, dados de qualidade e restauração de áreas degradadas. É possível conciliar agricultura, pecuária e conservação, aumentando produtividade e recuperando ecossistemas. Iniciativas de consórcio agrícola-floresta-pecuária já demonstraram resultados positivos.
**A UnB está preparada para apoiar essas iniciativas?**
A Rede Biota Cerrado envolve pesquisadores de várias instituições em todo o país. As soluções existem, e a sociedade deve ouvir a ciência para tomar decisões informadas. Ninguém quer apagão ou falta de água. Preservar o Cerrado significa garantir qualidade de vida, alimentação e justiça social.
**Como funciona o Cadastro Ambiental Rural?**
Todo proprietário deveria cadastrar sua propriedade, indicando áreas ocupadas por agricultura, pecuária, edificações e áreas verdes. Se o cadastro fosse monitorado e atualizado, seria muito mais fácil acompanhar a situação do Cerrado e de outros biomas. Atualmente, nem todas as propriedades estão registradas corretamente, o que dificulta políticas públicas eficientes.
**Qual o papel do Cerrado no mercado de carbono?**
Grande parte da biomassa está abaixo do solo, nas raízes. É uma “floresta invertida”. Ignorar o Cerrado nesse mercado é um erro, pois a degradação libera carbono acumulado por séculos. O Cerrado é um importante repositório de carbono. Incorporá-lo em mecanismos de compensação climática é estratégico para reduzir emissões e valorizar práticas de conservação.
**E sobre financiamento climático? O Cerrado precisa de investimentos?**
Precisamos de dados confiáveis, monitoramento e atualização constante. Investimentos em ciência e tecnologia são essenciais para enfrentar crises climáticas. Universidades públicas e institutos de pesquisa têm papel estratégico. Sem esses recursos, políticas ambientais permanecem fragmentadas e ineficazes.
**Qual é o papel dos povos indígenas e das comunidades tradicionais na preservação do Cerrado?**
São fundamentais. Vivem em harmonia com o Cerrado há séculos. Preservar suas terras significa proteger a biodiversidade e enfrentar mudanças climáticas. Comunidades tradicionais também atuam como guardiãs de áreas estratégicas de água e biodiversidade, com técnicas de manejo sustentável adaptadas às condições locais.
**E no Distrito Federal, o Cerrado enfrenta desafios específicos?**
Aqui, a proporção de áreas protegidas é alta, com parques nacionais e unidades de conservação, mas o crescimento urbano isola essas áreas. É essencial preservar cursos d’água e habitats naturais para manter a qualidade de vida da população. Queimadas, inclusive criminosas, ameaçam ecossistemas e espécies nativas.
**Como o cuidado com o Cerrado garante qualidade de vida?**
Água, alimento, energia e justiça social estão interligados à conservação do bioma. Ignorá-lo é comprometer o futuro. Políticas integradas, monitoramento científico e engajamento da sociedade são fundamentais para um Cerrado sustentável.