ALDO PAVIAN
Geógrafo e professor sênior da Universidade de Brasília
O Brasil conquistou, novamente, um lugar de destaque no cenário internacional ao deixar o Mapa da Fome, pela segunda vez, e se consolidar como um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Diversas partes do país produzem alimentos e frutas, como no sertão do Nordeste, após receber água por canais construídos para desviar água do Rio São Francisco, uma dádiva para que essa água vença o que foi, por muitos séculos, um dos maiores problemas do território chamado de Semiárido Nordestino.
O país teria condições de alimentar a própria população e se organizar para exportar. Se exportasse, poderia matar a fome de populações sofridas de outras regiões do mundo que possuem carência alimentar. No entanto, o Brasil convive com uma dura contradição: embora o país seja uma potência agrícola, milhões de brasileiros ainda enfrentam a incerteza sobre o que pôr na mesa.
O acesso a uma alimentação saudável, adequada e nutritiva permanece restrito a uma parcela privilegiada da população brasileira — classe média e alta — enquanto a grande maioria, especialmente periferias urbanas pobres e comunidades vulneráveis, sofre com a insegurança alimentar. Não fazem sequer três refeições ao dia. Essa situação de penúria não se configura apenas nos dias correntes, conforme escreve Josué de Castro em suas obras como *Geografia da Fome* (1946) e *Fome: um tema proibido* (1996). Nessa segunda obra, o autor escreve: “Nas terras pobres famintas do Nordeste brasileiro, onde nasci, é hábito servir-se um pedacinho de carne seca com um prato bem cheio de farofa. O suficiente de carne — quase um nada — para dar gosto e cheiro a toda uma montanha de farofa feita de farinha de farofa, escaldada com sal” (Castro, p. 23, 1996). Josué de Castro, ao falar sobre esse tema, poderia estar falando e escrevendo sobre uma grande parte do Brasil, em rincões do interior onde produtos alimentares industrializados ou mesmo frutas e verduras da própria região não chegam aos famintos desses territórios longínquos.
Essa desigualdade no acesso aos alimentos revela uma face cruel de nosso país. Os alimentos verdadeiramente adequados geralmente estão nas mãos daqueles que possuem melhores condições financeiras — as classes média e alta — deixando os mais pobres à mercê de poucas escolhas, não apenas limitadas, mas também com uma qualidade alimentícia inferior. A lógica mercadológica das cidades faz com que produtos ultraprocessados, com baixo valor nutricional, sejam mais acessíveis para quem vai ao supermercado se abastecer, contribuindo com a distribuição de uma alimentação inadequada e agravando problemas de saúde pública.
Surgem doenças crônicas, que atingem exponencialmente as populações de baixa renda. Ainda bem que no Brasil há o SUS (Sistema Único de Saúde), que se faz presente em todas as regiões e que atende a população inteira, sendo elogiado por países ricos do Norte, que não possuem um sistema como o SUS. E a elite do país não se importa com essa situação e se organiza para que a eles não faltem alimentos.
Tais fatos já eram observados em meados do século XX por Josué de Castro, geógrafo, cientista e escritor, que ressaltava que a fome não era resultado de fatores naturais apenas, mas sim das ações humanas que corroboram com a ausência da distribuição alimentícia ideal. Hoje, apesar de haver uma maior oferta global de alimentos, a sua distribuição equitativa é o desafio mais urgente.
O problema não está na falta de alimentos. O que muitos não conseguem é ter acesso a eles, como indicado acima. Avançar no aspecto da distribuição de alimentos exige olhar para além da produção agrícola e assegurar que os alimentos apropriados cheguem a todos os lares brasileiros, independentemente de sua classe social. Parece utopia, todavia, a disparidade econômica no Brasil é um dos principais fatores que distancia os cidadãos do acesso integral aos alimentos saudáveis e com grande teor nutricional.
Por isso, torna-se imprescindível serem fortalecidos os programas de proteção social e de combate com rigor à influência da indústria dos alimentos ultraprocessados, que substituem refeições saudáveis e comprometem a saúde dos mais vulneráveis. A garantia de uma alimentação saudável é um passo indispensável para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, longe da fome e da injustiça nutricional. O Brasil pode e deve usar sua capacidade produtiva para erradicar não apenas a fome, mas também a desigualdade no acesso a alimentos que dignificam a vida e promovem a saúde de toda a população.