Referência mundial nos debates sobre o Cerrado, Mercedes Bustamante considera absolutamente necessário superar o “deficit de consciência” em relação ao bioma em particular, e à crise climática em geral.
Na avaliação da especialista, a savana brasileira, longe de ter a mesma visibilidade global da floresta tropical amazônica, precisa urgentemente de uma atenção maior nos debates que se aproximam da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), em Belém. “O Cerrado é fundamental para a estabilidade ambiental do Brasil e da América do Sul, e sua proteção deve ser uma prioridade na COP30. Estamos falando da savana tropical mais biodiversa, berço de oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras.”
Nesta entrevista ao *Correio*, a integrante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ex-presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) desmonta o falso dilema entre desenvolvimento e sustentabilidade — “a conservação também faz parte da produção, especialmente no caso da agricultura” — e afirma que ainda há tempo para evitar uma catástrofe global, apesar de sinais alarmantes, como o expressivo branqueamento de corais nos oceanos. Confira os principais trechos da entrevista.
**Às vésperas da COP30, o Brasil ainda enfrenta um deficit de consciência sobre os impactos das mudanças climáticas? O debate não deveria envolver toda a sociedade, e não apenas os especialistas?**
Embora a conscientização sobre as mudanças climáticas tenha de fato crescido, e a população brasileira majoritariamente reconheça a importância da proteção ambiental, ainda existe um deficit a ser superado, especialmente quando se trata de envolver toda a sociedade e dar a devida atenção a biomas críticos como o Cerrado.
**Como superar esse deficit de consciência? Na época da covid, houve um engajamento dos meios de comunicação para enfrentar o problema. Guardadas as devidas proporções e singularidades, seria necessário um esforço semelhante de comunicação para conscientizar todos os setores da sociedade?**
A percepção de que é necessário um esforço massivo de comunicação, similar ao visto durante a pandemia, está alinhada com as evidências atuais. A Agenda de Ação da COP30 tem como um de seus pilares mobilizar ações não apenas de governos, mas de toda a sociedade civil, empresas, investidores, cidades e estados. Isso indica um reconhecimento oficial de que o desafio climático não pode ser resolvido apenas por especialistas em salas de negociação.
Estudos mostram que o engajamento com causas ambientais nas redes sociais aumentou nos últimos cinco anos, bem como o volume de notícias sobre o tema. Isso demonstra que a comunicação é uma ferramenta poderosa para educar, conscientizar e engajar comunidades, especialistas e líderes de opinião. Evoluímos em relação à forma pejorativa como alguns setores tratavam os defensores do meio ambiente, chamando-os de “ecochatos”, mas há muito a ser feito.
**Em que estágio estamos em relação aos países mais desenvolvidos nesta área?**
A questão ambiental e, em particular, a mudança do clima, já não são temas de determinados nichos ou setores da sociedade. As evidências científicas e as observações dos impactos deixam claro que a economia, a saúde, a agricultura, os ecossistemas, as cidades e vários outros segmentos já são influenciados pela degradação do meio ambiente e do clima — e que todos serão afetados, mas com países e grupos sociais mais vulneráveis. O Brasil precisa se preparar, reduzir suas vulnerabilidades e encaminhar a transformação de sua economia para construção de uma sociedade resiliente ao clima.
**Diante do cenário atual do Cerrado, quais seriam as principais conquistas que o Brasil deveria buscar na COP30? E por que o bioma merece maior destaque nas discussões climáticas internacionais?**
O Cerrado é fundamental para a estabilidade ambiental do Brasil e da América do Sul, e sua proteção deve ser uma prioridade na COP30. Estamos falando da savana tropical mais biodiversa, berço de oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras. Hoje, a ciência reconhece claramente o Cerrado como bioma crítico para segurança hídrica e climática. No entanto, em 2024, 9,7 milhões de hectares foram queimados e há ainda forte pressão da expansão agrícola. Precisamos de compromissos financeiros internacionais específicos para sua proteção e restauração. Há, no entanto, fatos positivos. Recentemente, o Fundo Amazônia aprovou R$ 150 milhões para combate a incêndios no Cerrado e Pantanal, um marco importante.
**A senhora é uma das maiores especialistas do mundo em Cerrado. Como enxerga a visão dos países em relação à savana brasileira?**
Gradualmente, há uma maior inserção do Cerrado nas discussões internacionais, mas ainda não temos a savana no imaginário de outros países quando nos referimos ao Brasil. É importante lembrar que nosso país tem importantes biomas florestais, mas também temos biomas onde outros tipos de vegetação predominam. Todos os biomas têm valor de conservação, demandam um uso sustentável e são patrimônios da sociedade hoje e devem permanecer para as futuras gerações.
**Enquanto os indicadores ambientais se agravam, o Congresso aprova medidas que fragilizam a legislação de proteção. O que fazer para despertar a consciência da classe política?**
A classe política precisa ser responsabilizada por ações e decisões que destroem e degradam as condições ambientais, pois representam danos coletivos globais, mas que serão primeiramente sentidos pela população brasileira. Em 2026, teremos eleições, e esse é um momento fundamental de prestação de contas. É preciso consultar quem são os candidatos (especialmente para o Legislativo), quais são suas posições e propostas para a área ambiental. O candidato ou a candidata que não conseguir entender a dimensão do desafio da mudança climática não merece nosso voto.
**A classe política alega que é preciso proteger o setor produtivo. Qual é a sustentabilidade do agronegócio ante a iminência da crise climática?**
É preciso lembrar que a conservação também faz parte da produção, em especial no caso da agricultura. A agricultura é a atividade econômica que mais depende dos recursos naturais (polinizadores, controle de pragas, solos saudáveis e biodiversos, etc.) e da estabilidade climática (temperatura adequada, chuva na hora certa e na quantidade certa). A ciência mostra que a agricultura será fundamentalmente afetada pela mudança do clima. O agronegócio brasileiro pode contribuir tanto com a mitigação como com a adaptação às mudanças. As lideranças políticas que se manifestam como favoráveis ao agronegócio deveriam ser as primeiras a defender políticas ambientais e climáticas como salvaguardas da viabilidade do setor.
**Em que ponto estamos da crise climática? O que podemos e o que não podemos mais reverter?**
O planeta já enfrenta consequências graves e, em alguns aspectos, irreversíveis. Um relatório recente alerta que o primeiro grande ponto de inflexão catastrófico e irreversível já foi atingido: a morte generalizada dos recifes de corais. Mais de 80% deles foram afetados por branqueamento em massa devido ao aquecimento dos oceanos. Temos ainda o risco de colapso de sistemas cruciais como a Circulação Meridional do Atlântico — que regula o clima global — e a degradação da Floresta Amazônica e das calotas polares, se o aquecimento global não for contido. Ainda podemos virar a chave, com a redução robusta e rápida dos gases de efeito estufa, proteção dos sistemas naturais que contribuem com a assimilação de gás carbônico e condução de uma economia com base em energias renováveis.
**A consciência sobre o Cerrado em relação à Amazônia foi ampliada ou ainda é um desafio urgente? Como proteger o Cerrado?**
A proteção do Cerrado é ainda um desafio urgente. Tanto a proteção como a superação do deficit de consciência sobre esse bioma tão relevante exigem ações concretas e coordenadas e engajamento da sociedade. Entre as ações podemos elencar: fortalecer a governança territorial e o financiamento com a alocação de mais recursos e a condução de políticas nacionais integradas; comunicar com eficácia para educar e engajar o público. A comunicação deve ser clara, objetiva e sensível, mostrando a conexão direta entre a proteção do Cerrado e a qualidade de vida das pessoas.
O engajamento inclui também o setor produtivo não acadêmico. O agronegócio já percebe que não existe sustentabilidade sem eficiência. Práticas que protegem o solo e sequestram carbono são vistas como essenciais para manter a competitividade diante dos eventos climáticos extremos. É preciso demonstrar que a proteção ambiental e a produção de alimentos não são excludentes, mas complementares.
**Como o Brasil pode fortalecer a proteção do Cerrado e articular políticas públicas eficazes para o bioma, inclusive na COP30?**
A sensibilização da classe política é fundamental e pode ocorrer por meio da pressão social, como a mobilização e a cobrança da sociedade, mostrando que a pauta ambiental é de interesse da maioria, e por argumentos econômicos, que indicam que a degradação ambiental gera prejuízos econômicos de longo prazo, enquanto a economia verde cria empregos e oportunidades. O diálogo constante entre cientistas, ambientalistas e parlamentares deve basear as leis em evidências sólidas.
Apesar de sua relevância estratégica, o Cerrado ainda não conta com um Instituto Nacional ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, a exemplo dos biomas Amazônia, Caatinga, Mata Atlântica e Pantanal. Reitores de 24 instituições de ensino superior do bioma já se manifestaram pela criação do Instituto Nacional do Cerrado, que daria centralidade às questões relativas ao bioma e permitiria a articulação das capacidades de pesquisa e inovação distribuídas nas nossas instituições. Ter a criação do Instituto Nacional do Cerrado como uma das ações do Brasil na COP30 seria um reconhecimento claro por parte da gestão federal de sua grande importância e uma forte sinalização de uma estratégia consistente de ter em nosso segundo maior bioma parte significativa das soluções climáticas.